quarta-feira, junho 16, 2010

A comprar

"Um dia cometi a asneira de perguntar ao Anibaleitor porque é que ele não tinha televisão na gruta.
"Televisão?" Rugiu, furioso. "E para que queres tu tal coisa? Não tens livros que cheguem?"
"Bem, para ver programas giros..."
"Achas?" O Anibaleitor atirou um livro — salvo erro, uma edição de bolso do Orlando, da Virgínia Woolf— ao chão. "Olha, assobia para o livro, a ver se ele vai ter contigo."
Nem tentei assobiar. Já estava arrependido de ter aberto a boca.
"Ele não vem ter connosco se assobiarmos, pois não? A vida é assim, as coisas boas da vida são assim. Nós temos de dar um passo, as coisas não vêm até nós sozinhas, não há comando que nos valha, por mais botões que tenha."
"Sim, sim, já percebi..."
Mas o Anibaleitor estava embalado:
"A vida não é estar sentado num sofá a dar ao polegar à espera que apareça algo no ecrã a desenroscar-nos (ou desenrascar-nos) do nosso torpor."
Eu fiz, só para o arreliar, um ar banzado: "Não é?"
O Anibaleitor rolou os olhos.
"Bem, se quisermos a vida é isso, não passará disso, mas não me parece a melhor forma de a usufruir. Um livro exige que se vá ter com ele. Um ecrã com palermices não. É a diferença entre viajar e ficar parado. O livro obriga-nos a viajar, a TV a ficar parados feitos basbaques."
"Pois..."
"E viajar tem, quase sempre, mais graça do que ficar parado. Não te parece?"
*Rui Zink, (2010), O Anibaleitor, Lisboa, Teorema

Sem comentários:

Enviar um comentário

as horas dos dias